quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

PROFESSOR: PROFISSÃO PERIGO

Créditos: Josafá Santos - Correio Caros Amigos

15 de outubro. Deveria estar orgulhoso por ser homenageado pelo dia destinado à profissão que abracei, deveria estar comemorando com os meus colegas de ofício, mas não estou. Nem eu nem meus colegas, pelo menos uma imensa maioria, não temos hoje o que comemorar, ainda que orgulhosos da profissão que abraçamos. Ser professor tem se tornado um misto de ofício perigoso e insistência masoquista. Quase um ato suicida. Do pior tipo. Do tipo que, aos poucos, lentamente, mata a alma. O corpo físico, nem se diga.
Poderia falar das muitas estatísticas que apontam o alarmante (e alguém se alarma com isso?) quadro de profissionais de educação com sérios problemas de ordem neuro / fisico/amocional/psicológicas, em decorrência das péssimas condições de nosso trabalho. Não bastasse o salário indigno à função exercida, somam-se outros tantos cravos conhecidos, fincados nessa pesada cruz a carregar-se: as salas de aula criminosamente superlotadas, as (inúmeras) escolas fisicamente ainda mal aparelhadas, a falta de recursos, o que nos força a aulas semimedievais, ainda à base da saliva, quadro de giz; o barulho ensurdecedor, lancinante, destrutivo, que emanam de todos os recantos da escola, das sala de aula, dos corredores, do pátio, da rua, o barulho, ah, o barulho! Nossa única arma contra ele é o nosso grito, cada vez mais rouco, pois quase aos gritos, ou aos gritos de fato, temos de dar aula, única forma de nos fazer ouvir ou, muitas vezes, respeitar nesse campo de batalha que tem se tornado as salas de aul. Aos que se recusam a, gritando, perder a voz, em poucos anos, e esses, os que perdem a voz, são muitos, resta a difícil arte de educar os ouvidos e corações alheios, buscando-se-lhes provar que é possível os seres humanos se comunicarem vocalmente sem que um fique surdo ou sem que o outro perca o dom da voz ou da razão. Literalmente falando.
Educar nunca foi tão periogoso. Somamos a tudo dito acima o ensinar-se a muitos que, simplesmente, não querem aprender. E muitos não o querem não por desvio de caráter ou por indolência íntima, mas porque foram ensinados, e muito bem, antes de chegar à escola, que estudar é algo ruim. Tiveram bons professores. Falo dos pais desestruturados, filhos por sua vez de outras "famílias" mal geridas num ciclo evolutivo quase sem fim. Falo de um encontro casual, de um descuido contraceptivo que o destino fez transformar-se numa "família". Sem a base efetivo/emocional/estrutural necessária, sem o planejamento mínimo, duas pessoas que mal se conheciam se fazem, em nove meses, os primeiros tutores de um ser que aos 6 ou 7 anos é mandado para um lugar chamado escola. Escola que muitas vezes é vista e usada como creche, ora como porto "seguro" das ruas violentas, ou simplesmente como o local onde seu rebento vá receber alguma porção de comida que seja ao longo do dia e onde será entregue a alguém que o forme como homem, como cidadão, como ser humano, já que para isso são pagos os professores. Dever da família? Que família?
Há ainda uma outra gama de seres, os que não tendo perspectiva nas ruas, e nela também não tendo limite algum, limite também que, não encontrando em casa se portam na sala de aula da mesma indigna forma que se portaria em seus domínios, buscando se impor pela tirania. Aos que aceitam, dá-se o embate, sempre desgastante, quando não perigoso. Por falar em embate, a escola tornou-se, com raras exceções, um local de batalhas, num campo minado. E muitos já são os mutilados nessa guerra. Numa outra análise, pode-se falar da escola como um hospital nãoa dmitido. Nela, muitos são os portadores dos mais variados tipos de patologias (emocionais, psicológicas, afetivas e físicas) sem que se lhes dê o tratamento adequado e necessário. Ao professor, esse que "abraçou o magistério como um sacerdócio" cabe a múltipla função de ser ao mesmo tempo: pai, mãe, irmão, psicológo, guia espiritual e médico. E, não raro, ser também da polícia. Sim, nas escolas também existem armas e drogas. E gente disposta a usá-las.
Muitos acharão pessimista o meu artigo, carregado de excessiva violência verbal. Violência? Violência é o que nós, educadores, temos vivido e morrido a cada dia em nossas unidades de ensino. Chegamos ao absurdo de começar a admitir o conceito de "agressividade aceitavelmente permitida". Os palavrões, os desacatos, os desrespeitos em sala de aula, nos corredores, nos pátios, nas áreas livres; as ameaças veladas ou não, dirigidas a quem trabalha em educação, tornam-se a cada dia um fato comum, "natural e perfeitamente aceitável" e que, portanto, deve ser por todos aceito. Tem se tornado o professor um refém dentro de seu local de trabalho. Em muitos casos, com medo de entrarmos em nossas escolas, com medo de nos sentirmos, ao sair delas, um vergonhoso e inaceitável sentimento de alívio nos toma conta da alma. Não passamos pelos bancos das universidades para, no exercício de nossa carreira, sentirmos isso.
Educador há doze anos e cidadão aos 35, nunca vi em minha vida um gari varrer a rua e ser xingado, ofendido. O mesmo digo de um policial a pé ou em sua viatura fardado ou à paisana; de um delegado em sua delegacia, de um dentista, de um médico, de um engraxate, de um mecânico, de um feirante ou de um ambulante durante os afazeres de seus ofícios. Aos professres, entretanto, criaram a fábula medonha de que eses seres suportam tudo, e que são eles os "detentores da extrema mansuetude e paciência". Não sabem os que tal asneira professem como verdade que a "paciência" diante desses casos, cada vez mais citados, muitas vezes nada mais é do que simples medo, ou anulação enquanto ser, travestidos de calmaria, de santificada resignação. Muitos já são os estressados, os roucos, os mudos, os surdos, os depressivos, os enfartados, os fartos (ah, os fartos do ofício), entre nós, professores. Mas também muitos já são os agredidos, os mutilados, os ameaçados de morte e por fim os mortos de fato. Mas esses números quase nunca aparecem. Especialmente nas propagandas dos partidos e políticos eleitos, ou dos que lutam para se eleger. Para ambos, a educação é, e sempre será, o "futuro da nação", então já roto de tão usado, uma falácia que não causa mais efeito algum. Para estes é claro que os problemas existem, mas também não são tão graves a ponto de merecerem real atenção.
Essa técnica, aliás, a de esconder a cabeça num buraco, tal qual se diz da avestruz diante de um inimigo ou em dias de tempestade, é também norma típica dentre muitos educadores (em tempo: a história da avestruz covarde é fictícia. Nem ela é um animal tão estúpido assim). "Problemas? Que problemas? Minha escola? Problemas? Eu? Eu não tenho problema algum ..." Admitir um mistério implica resolvê-lo, o que implica muito trabalho, ou no mínimo uma mudança significativa de postura diante de si, do mundo, da vida. E muitos professores (sic) simplesmente não querem isso. Optaram (aí sim, resignadamente) por aguardar de forma ansiosa pelo dia de sua sonhada aposentadoria para, então, deixarem de ser professores.
O que ainda salva nós, professores, nesses dias de eterna tempestade nesse imenso mar de calhaus são as boas presenças e lembranças dos nossos (ainda muitos) bons alunos, que nos fazem acreditar que o nosso sonho de um mundo digno ainda é possível. Mas há de se dizer: desses bons alunos, um número cada vez menor se vê abraçando a docência como destino. Fica a pergunta: sem professores, onde estará nosso futuro?
Josafá Santos é historiador e especialista em educação.

Nenhum comentário: